Em seu esperado depoimento de abertura da CPI da Covid, Luiz Henrique Mandetta jantou adversários e apresentou um previsível arco narrativo sobre a responsabilidade de Jair Bolsonaro na aurora da pandemia que já matou quase 410 mil brasileiros.
Previsível, decantado até na cola formulada na Casa Civil para os governistas, mas nem por isso menos devastador para o presidente.
Não é o caso de esperar grandes revelações na CPI da Covid, salvo o Duda Mendonça eventual —em 2005, na CPI dos Correios, a inesperada admissão do publicitário que ganhara caixa dois do PT quase implodiu o primeiro governo Luiz Inácio Lula da Silva.
Nada disso ocorreu nesta terça (4), claro, e o nicho bolsonarista raiz do eleitorado deverá seguir em negação e em retirada.
Isso dito, o roteiro consignado por Mandetta é um passo a passo de como o negacionismo manietou o combate de saída ao Sars-CoV-2. Ele já havia falado antes em um livro e inúmeras entrevistas, mas a crise aguda dá tempestividade ao relato mais amarrado.
Não por acaso, a ausência súbita do ex-ministro Eduardo Pazuello de seu depoimento, pelo anunciado contato com infectados com a Covid-19, sugere tanto um apagão tático do Planalto quanto uma precaução sanitária.
Ato contínuo ao anúncio de que o general não iria depor nesta quarta (5), os governistas da comissão buscaram fazê-lo depor virtualmente —o que claramente facilitaria o controle da fala do notoriamente mercurial ex-ministro.
Não deu certo, pela atuação do presidente da CPI, Omar Aziz (PSD-AM).
Seja como for, a questão colocou em evidência o caráter de profecia autorrealizável da fala de Mandetta, que remete para o estágio atual da crise, com Bolsonaro atrapalhando até agora a vacinação e lutando contra restrição de circulação de vírus.
Todos sabiam o que seria descrito, mas a ênfase colocada em pontos como a ignorância deliberada em nome da imunidade de rebanho e à promoção criminosa da hidroxicloroquina até com mudança proposta de bula deu tintas dramáticas ao relato.
Já o trecho sobre como Bolsonaro, seus filhos e o Itamaraty de Ernesto Araújo tratavam os contatos com a China, dificultando qualquer cooperação, deveria ser estudado um dia no Instituto Rio Branco.
Chamou a atenção a moderação do relator, Renan Calheiros (MDB-AL), que vinha com sangue nos olhos nos últimos dias. Em suas perguntas, o alagoano deixou Mandetta falar, e só buscou nominar o papel de Bolsonaro no fim de sua intervenção.
Isso pode ser meramente uma cortina de fumaça, ainda mais com a pretensão do relator de ajudar a candidatura de Lula ao Planalto no ano que vem —e de operar sua eventual volta à presidência do Senado.
Nesse sentido, nada mais simbólico do que a CPI começar com o líder petista fazendo uma turnê por Brasília. Por outro lado, há nuances: o Senado é uma Casa conhecida por sua atávica tendência à acomodação.
Mandetta, escaldado pelos seus tempos de ministro, brilhou como depoente. Humilhou governistas mal preparados, com respostas objetivas a questionamentos fáceis como os elaborados por Eduardo Girão (Podemos-CE).
Num momento anedótico, ainda expôs Ciro Nogueira (PP-PI) ao ridículo, ao apontar que a questão apresentada pelo prócer do centrão havia sido cozida no smartphone do ministro Fábio Faria (Comunicações).
O ex-ministro escapou com alguns arranhões. Recebeu um ou dois golpes de menor intensidade que absorveu, como questionamentos sobre barreiras sanitárias.
Mas a principal questão à mão não interessava nem aos opositores, nem aos governistas: destrinchar a associação de Mandetta com Bolsonaro, que não virou um negacionista da ciência em março de 2020.
Os primeiros não queriam enfraquecer a testemunha; os segundos, não buscariam expor o presidente. Tanto foi assim que a abordagem do líder do governo no Senado, Fernando Bezerra Coelho (MDB-PE), apelou ao realismo mágico. Elogiou o ex-ministro e disse que Bolsonaro seguiu o trabalho iniciado por ele.
Mandetta, que vem sendo vendido pelo seu DEM como presidenciável e até ganhou assento no manifesto conjunto com outros cinco nomes que se colocam contra Lula e contra Bolsonaro, apesar de ser visto por eles mais como um eventual aliado ou vice de chapa, evitou proselitismo de cunho eleitoral explícito.
Ao fim, se o Planalto esperava dividir com Mandetta algo do horror associado a Eduardo Pazuello, falhou.
Ganhou em troca a carta-bomba divulgada pelo ex-ministro e seu presciente trecho final: “Recomendamos, expressamente, que a Presidência da República reveja o posicionamento adotado, acompanhando as recomendações do Ministério da Saúde”.
Completou em 28 de março de 2020 Mandetta: “A adoção de medidas em sentido contrário poderá gerar colapso do sistema de saúde e gravíssimas consequências à saúde da população”.